Geralmente quando se fala em obras envolvendo adolescentes se pensa: sexo, comédia besteirol, aventura sem nexo, drogas e mais sexo. Tudo num estilo leviano e simplista que costuma subestimar a realidade dos jovens.
Exatamente o contrário do que fez Daniel Clowes em Mundo Fantasma - Ghost World (84 pág, 2011), uma das Histórias em Quadrinhos americanas mais premiadas do fim do século XX, que a Gal Editora publicou em abril aqui no Brasil.
Lançada originalmente em episódios esparsos na revista independente Eightball entre 1993 e 1997 nos EUA, foi compilada num encadernado logo depois, o que bastou para começarem os elogios, prêmios e a citação como novo clássico na revista Time.
Enid e Rebecca são duas amigas que, recém-formadas no ensino médio, passeiam pela sua cidadezinha do interior sempre tendo o que falar sobre tudo e todos que encontram pelo caminho.
Amigas desde pequenas, Enid é a mais reacionária das duas e tem sempre uma história para contar, um estilo diferente de se vestir e um comentário cínico a fazer sobre o que observa. Rebeca é mais contida, romântica que vai sempre nas ondas da amiga.
Ansiando sempre por algo que as diferencie dos demais, cada uma das duas enfrenta o fim da infância a sua maneira.
Clowes produziu a série num espaço de seis anos, então teve bastante tempo pra planejar cada um dos oito capítulos da história entrando de cabeça em algumas aflições adolescentes como trabalho, sexo, amizade, amor e futuro.
Trabalha essas questões de forma bastante orgânica, lúdica e propositalmente acidental, alternando sempre com situações de humor que revelam o comum exagero e contradições da idade.
Sobram críticas a programas de TV, estilos musicais, política e sociedade de consumo em geral.
A maior parte dessas críticas vem na voz de Enid, em sua procura por achar um estilo que a defina como adulta, mas sempre revelando ser mais imatura do que se considera.
A maior parte dessas críticas vem na voz de Enid, em sua procura por achar um estilo que a defina como adulta, mas sempre revelando ser mais imatura do que se considera.
No primeiro capítulo, por exemplo, Enid é apresentada a contra-gosto a um ex-padre pedófilo por um conhecido que publica uma revista pra juventude neo-nazista e tudo que faz é escutar quase sem reação e dizer alguns palavrões malcriados ao homem.
Tipos estranhos, bizarros e peculiares como esses, que tem toda a possibilidade de existirem de verdade, são freqüentes no álbum.
Tipos estranhos, bizarros e peculiares como esses, que tem toda a possibilidade de existirem de verdade, são freqüentes no álbum.
Os primeiros cinco capítulos tem uma natureza mais episódica, com mais humor e podem ser lidos em qualquer ordem sem prejuízo de entendimento.
Os três últimos apresentam uma continuidade definida pela imposição do pai de Enid que ela preste vestibular pra uma faculdade bem distante de onde moram.
O vislumbre da possível separação das duas leva a um desenvolvimento melancólico, exaltando bem mais o contraste entre as responsabilidades de adulto e a busca conforto nas lembranças de infância.
O vislumbre da possível separação das duas leva a um desenvolvimento melancólico, exaltando bem mais o contraste entre as responsabilidades de adulto e a busca conforto nas lembranças de infância.
O Mundo Fantasma (Ghost World) do título faz referência a uma misteriosa pixação persistente em vários muros e portões da cidade, mas também pode ser relacionado à única cor além do preto e branco presente no álbum: um fantasmagórico verde-água.
Outra possibilidade (mais filosófica) para o título é ressaltar o sentimento infantil de egocentrismo em relação ao mundo, que tornaria as personagens bem mais reais para si mesmas que o etéreo universo onde vivem.
Afinal, que adolescente nunca teve a fase de achar que todos na rua olhavam pra ele?
Afinal, que adolescente nunca teve a fase de achar que todos na rua olhavam pra ele?
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A HQ fez tanto sucesso que um filme foi lançado em 2001 com roteiro do próprio Daniel Clowes com colaboração do diretor Terry Zwigoff que, por incrível que pareça, aprofunda muitas das questões desenvolvidas na HQ.
Em Ghost World - Aprendendo a Viver, o roteiro faz grandes mudanças na trama da HQ e a principal delas é estabelecer uma linha narrativa consistente desde o início (o que não existia nos quadrinhos). Sem falar que alguns personagens mais polêmicos desaparecem e dão origens a outros tão bizarros quanto.
Thora Birch interpreta Enid de forma perfeita em eterno contraste entre postura e idade sempre com o desejo de se reinventar sendo expresso em roupas ou algum comentário pseudo-intelectual na ponta da língua sobre tudo.
Sem falar que está lindíssima.
Sem falar que está lindíssima.
A deusa Scarlett Johansson é "enfeiada" para viver Rebecca, que é prejudicada pelo roteiro e acaba perdendo um pouco da personalidade que tinha nos quadrinhos.
Steve Buscemi é Seymor, um quarentão amante de jazz e recluso de quem Enid se aproxima como forma de se redimir por ter pregado um trote e por quem acaba se afeiçoando.
A sensibilidade da HQ também está presente no filme e, mesmo com todas as mudanças, dá pra reconhecer a essência da história.
A produção está de parabéns ao aproximar a história da realidade, por exemplo, nos figurinos. Visto que Enid quase sempre repete suas blusas e roupas preferidas, o que é comum na vida real, mas bem difícil de se ver em filmes mais Hollywoodianos.
Produzido e lançado no circuito independente, o filme teve um sucesso bastante aceitável, foi indicado ao OSCAR pelo roteiro e rendeu alguns prêmios de atuação a Steve Buscemi.
Ainda hoje (dez anos depois) é relançado em DVD. Vale a pena procurar.
Ainda hoje (dez anos depois) é relançado em DVD. Vale a pena procurar.
Uma bela história com um retrato bem fiel, ainda que um pouco verborrágico, do fim da adolescência na década de 1990 é o que esperar de Ghost World, em qualquer uma de suas duas encarnações.
Recomendado.
Valeu!
Um comentário:
Eu lembro desta hq no episódio dos Simpsons onde aparece A Liga Extraordinária dos Roteiristas.
Não sabia que existia o filme.
E uma dica: elimine esse excesso de cores do texto, isso funciona com fãs do Restart, mas não com seres humanos.
Valeu.
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