Mentira. Na verdade tenho várias palavras, mas nenhuma delas sozinha serviria para representar a série como um todo.
LOCAL é uma série de 12 histórias publicadas entre 2005 e 2008 por uma editora pequena, a ONI Press, nos EUA e que chega aqui no Brasil em dois volumes pela Editora Devir.
Foi escrita por Brian Wood, roteirista premiado de quadrinhos alternativos, que já trabalhou como desenvolvedor de jogos de videogames (GTA, Max Payne etc.) e atualmente escreve a elogiada DMZ para o selo VERTIGO (que só publica quadrinhos adultos) da DCComics.
LOCAL foi desenhada por Ryan Kelly, artista plástico e ilustrador que já trabalhou em títulos da VERTIGO (American Virgin, Lúcifer e etc.) e atualmente faz ilustrações para revistas como Time, Rolling Stone e outras, além de realizar exposições e trabalhar como professor de arte.
Foi criada como uma série que tentaria captar o espírito de cidades e regiões não muito movimentadas da América do Norte. Entre cidades pequenas do interior e bairros mais calmos de grandes cidades, Brian Wood quis contar histórias de apelo emocional universal que tivessem essas cidades como pano de fundo.
São histórias com personagens bastante realistas e situações que vão de corriqueiras a inusitadas, mas bem interessantes, emocionantes e com grande potencial de identificação do leitor.
Com uma estrutura quase sem nenhum personagem fixo, as histórias meio que seguem Megan McKeenan, uma jovem de 17 anos por suas andanças pelos EUA e Canadá.Digo “meio que seguem”, pois Megan nem sempre é personagem principal das histórias. Ela aparece em todas as 12 histórias, mas só estrela mesmo sete delas. Nas outras cinco, ela faz participações especiais e pequenas figurações, sendo que numa delas só sabemos de sua existência na leitura de cartões postais feita por seu primo.
Além de Megan e da condição da mudança de região, a única coisa que os autores mantém fixo é o período de tempo narrativo de um ano entre uma história e outra. A primeira história se passa em 1994, a segunda em 1995 e por aí vai. Fica sempre uma expectativa pra onde vai a história seguinte.
Para todas as histórias foram feitas intensas pesquisas fotográficas das regiões apresentadas, as vezes com fotos tiradas pelos autores e outras vezes mandadas pelos leitores a pedido dos autores.
O próprio escritor diz num texto ao final de um episódio que fez questão que os personagens e suas histórias (todos inventados) acontecessem sempre em lugares reais.
São histórias planejadas a principio pra serem lidas independentemente umas das outras, mas conforme o escritor esclarece num comentário ao final de uma delas, Megan foi amadurecendo e se tornando uma personagem cada vez mais tridimensional: cheia de defeitos, porém cativante e com uma história que merecia ser contada com mais detalhes.
E é bem interessante notar o amadurecimento de Megan nesses doze anos entre a primeira e a última história, tanto psicologicamente como fisicamente, e o desenhista Ryan Kelly consegue mostrar esse aspecto físico de maneira magnífica. É só comparar Megan na primeira história, com o rosto redondo e corpo cheinho de adolescente, e na última, com o rosto levemente mais comprido e corpo desenvolvido de uma mulher de 30 anos, por exemplo.
Ryan é dono de um traço realista, mas de linhas simplificadas e tem um excelente domínio de contraste entre o preto e o branco. Os rostos de seus personagens talvez destoem um pouco do seu trabalho realista em corpos e cenários, mas isso é feito com estilo e finalidade de evocar uma expressividade bem definida, facilmente identificável e muito bem-vinda. Se fosse um filme, seus personagens seriam todos atores de primeira linha.
Um excelente casamento entre texto e arte já que o argumento e o texto de Brian Wood, claro, não devem nada aos desenhos. Pra ilustrar isso (trocadilho legal) e como as histórias tratam de temas diferentes, vou tentar falar um pouco das histórias que mais gostei.
1- “Dez mil pensamentos por segundo” PORTLAND, Oregon – Megan tem que comprar um remédio controlado na farmácia pra seu namorado com uma receita falsificada. Lembra o filme Corra, Lola, Corra na estrutura. Com todas as possibilidades e conseqüências que uma simples ida a farmácia com um receita ilegal poderia causar. É aqui que ela começa a vaguear por cidades distantes.
2- “Namorado Polaroid” MINNEAPOLIS, Minnesota – Megan mora sozinha, mas todo dia encontra em seu apartamento uma foto nova com o rosto e um recado do misterioso rapaz que entra lá enquanto ela está no trabalho. Excelente sacada do escritor numa história tão inusitada que poderia ser verdadeira, inclusive com o final em aberto.
3- “Theories and Defenses” RICHMOND, Virgínia – O vocalista de uma famosa banda de rock, desfeita depois de 14 anos de formação, dá uma entrevista por telefone sobre o sucesso, carreira, sonhos e futuro agora que voltou pra sua cidade natal. Enquanto ele fala, são mostrados como os outros integrantes da banda estão se adaptando a essa nova (e ao mesmo tempo velha) realidade de voltar pra casa. Grande história em que poucas palavras e imagens mostram um sincero panorama do rock nos EUA. Megan só aparece numa cena pedindo um autógrafo.
4- “Dois irmãos” MISSOULA, Montana – Megan está indo visitar uma estação de esqui, mas dá uma carona errada e é feita de refém num fast-food de beira de estrada enquanto seu carona (armado) tenta fazer com que seu teimoso irmão assine um documento. Considerada a história que colocou a série no mapa dos quadrinhos americanos, ela se destaca por ser violenta, emocional e com um final trágico. Daria um ótimo filme de refém.
9- “Queria que você estivesse aqui” NORMAN, Oklahoma – Megan recebe a notícia da morte de sua mãe e viaja com o namorado enquanto lembra de passagens de sua vida ao lado da mãe. Primeira história da série com flashbacks em que finalmente o autor decide contar o passado de Megan e o porquê dela não morar por muito tempo em lugar nenhum.
11- “A geração mais jovem” TORONTO, Ontário - Nancy Bai é recepcionista da editora onde Megan trabalha e estudante de arte em vias de apresentar seu trabalho de conclusão de curso. Usa Megan em seu trabalho final e isso não a deixa muito feliz. Com várias passagens sem texto, é uma história em que explicações, geralmente dadas ao leitor nos pensamentos e diálogos, são substituídos pela atenção aos detalhes dos desenhos. Narrativa gráfica quase que essencialmente visual e muito competente que teve a colaboração do desenhista Ryan Kelly no roteiro.
12- “A casa que Megan construiu” VERMONT, EUA – Megan volta a casa de sua infância e encara vários de seus fantasmas. Algumas pontas soltas são amarradas e a série se encerra com algumas promessas de juízo para Megan. Destaque para a conversa com o fantasma de sua mãe onde várias mágoas vem a tona.Passeando por vários gêneros, a série pode ser apreciada pelas histórias independentes uma das outras ou como um conjunto de histórias que mostram uma bela jornada de amadurecimento de personagem, mas lida de maneira episódica, ou seja, você não precisa saber como ela chegou no lugar ou porque ela está lá para apreciar a história.
Recomendado pra quem gosta de ação, comédia, romance e drama, mas com pessoas reais (que erram e acertam) e não simples personagens.
Valeu!
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